terça-feira, 22 de setembro de 2009

Dos deveres, dos direitos e de ser assim

Os olhos vitrificam. No estômago, frio de montanha russa. O sangue esquenta, enraivece, ferve. Instantaneamente congela. Suor frio pelos poros. Mãos geladas, trêmulas. Encosto de espuma vira tábua de carvalho nas costas petrificadas de tensão. Respiração truncada, pequena, travada. Alivia, enche o peito. O fio de naylon prestes a arrebentar volta a relaxar. Essa tensão é apenas uma das inúmeras esquemáticas da montagem. Montar é enganar os olhos, controlar as batidas do coração alheio, levar um bando de gente a sentir medo, pavor, alívio, tristeza, suspense, indignação, paixão, amor. Montagem é a técnica rítmica de traduzir idéias, concretizar histórias.

Todos temos o princípio da montagem impregnado em nosso ser. Como breve e importante lembrança, temos o Pai Cinema, com mais de 100 anos de história. No começo, puro caráter documental. Evolutivamente, contando histórias fictícias ou em forma de denúncias. Ali surge a arte de editar, montar, colar cenas. Os acessíveis programas de TV foram os primeiros contatos da "geração coca-cola" com a edição. Seja qual for o seu gênero: varejo, jornalístico, entretenimento ou variedades, as pessoas assistiam imagens montadas, mesmo que nem atentas à existência da montagem. Era tudo lata de feijoada: a mistura já nascia pronta na prateleira do mercado - basta abrir, esquentar e pronto. No caso, só levantar do sofá e apertar o botão "liga/desliga" da TV. Nos anos 2000, a "geração YouTube" veio como tsunâme - tanto na variedade de linguagem quanto na facilidade da assimilação dos gêneros de montagem. Pluggins e softwares baratos ou gratuitos popularizaram o acesso as mídias, e as pessoas começaram a brincar de montar imagens pra aparecer na internet. Hoje, no cacoete da "tecla del", tentamos editar até nossos rotineiros afazeres, cortar cenas de nosso dia-a-dia pra poupar tempo, dinamizar idéias. Como gostaríamos que certos desastres pessoais fossem sepultados na lixeira de uma ilha de edição, sem chance de recuperação dos dados! Quantos making ofs tragicômicos!... E nesse "bololô", eis que surge o super editor de imagens, ou simplesmente montador.

Editor não cansa - ou não deve se cansar - de ver cenas que dali há 4 dias serão apagadas do HD da ilha de edição e, intemperivelmente, da sua própria memória temporária cerebral. Editor viaja o mundo inteiro no widescreen. Desenvolve curiosidade, senso crítico, perfeccionismo: vira um observador chato. Em sua maturidade profissional, tranquiliza-se, e nessas horas vê no erro, o acerto da beleza. Editor chora de emoção. Admira-se pelos frames de distração que imprimem a face mais sincera das pessoas, ganha presentes diários de brilhos nos olhares e sorrisos tão espontâneos e distraídos que, se percebessem estar sendo captados, esconderíam-se de vergonha. Editor que sente mais do que normalmente sente, arrepia-se com melodias e rítmos, e deixa vir a tona o batuque ancestral primitivo que extrapola o instinto emocional. Esse instinto está presente em qualquer homo sapiens sapiens.

Apesar da solidão, é preciso ser sensível pra montar. É cuidar das pessoas. É ter ética pra manusear a verdade e os fatos. É preservar identidades, de modo certo ou não. É, por vezes, ocultar aquilo que não é agradável de se ver. É tomar posições morais de acordo com sua conduta pessoal: isso faço, isso não. E sempre vai ter um que faz porque gosta ou, na maioria das vezes porque precisa, por ataracsia, por ser puramente profissão. É preciso ter delicadeza, ser cordial, ter ciência da responsabilidade que se tem nas mãos, e literalmente nas mãos. Para um convicto editor, é impossível saber tudo o que existe sobre edição. Sempre haverá um jeito reinventado daquele que todo mundo um dia imitou, talvez uma nova linguagem, certamente um novo software, pluggins, ferramentas mil pra divertir montador igual brinquedo novo de criança. Ficamos brincando por horas: em turma ou sozinhos.

Montador não regride, montador estagna. E mesmo que não queira, ele certamente evolui a cada trabalho, porque não existe trabalho que não o ensine: seja aquele institucional do diretor estreiante, o videoclipe do diretor veterano ou o bendito curta do diretor estudante. Mesmo que seja o mais fácil VT, o mais singelo corte. Editor aprende técnicas, aprende respeito, aprende a admirar e apreciar soluções simples que ele nunca pensara em executar. Editor aprende que sempre existe um novo caminho, e aprende a aprender, aprende a humildemente receber conhecimento.

Montador de qualquer imagem cuida do que faz como se fosse um membro da família. Não raro, toma o papel de pai ou mãe. Outras vezes, apenas de cuidadoso obstetra, ciente dos riscos e das maravilhas da profissão. Montador é psicólogo: cuida da equipe enferma, do diretor desesperado que vê o filho doente, do diretor consciente que volta no final do dia pra buscar o filho já com psiquê definida. Montador vê, revê, escuta, "tre-escuta", remonta, coloca imagem pra lá, volta imagem pra cá, experimenta, sente, surta, se ausenta, volta, se revolta, insiste, as vezes chora, reaprende a ter paciência, pede ajuda aos companheiros, pede ajuda aos céus. Editor fica nervoso com os erros dos outros, nervoso com os próprios erros!, xinga aos ares, xinga a máquina, xinga a cadeira, xinga a equipe, se xinga!, grita contidamente, estravaza pelos dedos nervosos descontando fúria no teclado, passa raiva mesmo! Porque as vezes não tem jeito, e vai do jeito que está. Outras tantas, depois de todo esse sofrimento imaturo, e já em seu estado humano normal, respira fundo, e expreme o bagaço da massa encefálica mais algumas vezes em busca de solução. Tudo porque lembra e sabe que não é só ele quem está ali entre 4 paredes, lutando com uma tela de computador. Ele é apenas a ponta da corda, que já foi trançada pela luta de uma equipe que se doou pra fazer o que chegou em suas mãos. Então, editor vira semideus: ajuda, erra, acerta, conserta, salva. Pári. A estatística é de 90% suor, 8% criação espontânea, 1% inspiração sublime, 1% sorte.

Editor erra, porque editor é humano: come, toma banho, gosta de ver a luz do dia, o brilho da lua e das estrelas - afinal, "existe vida fora da ilha". Editor não é Deus, não opera milagres. Milagre é a satisfação em sorriso no rosto do diretor. Milagre é a lágrima do personagem mais simples de uma história na tela, é a platéia quando estravaza reação. Milagre é o abraço sincero depois de uma tarde de edição, sorvete e histórias. Milagre é fazer amigos, estabelecer laços pra muito além das 4 paredes de uma ilha. E mesmo com tudo isso, editor que é editor de verdade já entrou em conflito pessoal, vontade de largar tudo pra cima e mudar de país, de cidade, de profissão. Editor de verdade desiste de editar pelo menos uma vez na vida, vai trabalhar de garçon, vai prestar concurso público, virar vagabundo, mochileiro na Europa. Mas esse editor, que é o editor de verdade, depois de rodar o mundo, sente falta dos drops, não suporta o aperto no coração de tanta saudade da ilha, dos problemas, do requiém vai e vem da música em reverse, dos amigos. E ele volta a editar, duplamente apaixonado. Porque na vida de um editor de imagens sempre haverá espaço pra uma - ou apenas mais uma - crise existencial, e ele sempre vai voltar, porque ama o que faz. Simples assim…

(Querido amigo Bruno Corteze, obrigada por ter colocado-me carinhosamente nessa deliciosa roubada. Sem ela eu não teria a minha coleção em crescimento cúbico de cabelos brancos, várias realizações pessoais e incontáveis alegrias. Em abril de 2010 serão 10 anos de muitos cortes e histórias. Até hoje guardo com carinho as noites viradas dividindo o mesmo colchão e as conversas entre "renders" executados por um G3 Blue da Apple, de processador 400Mhz, 30 GB de HD e 500MB de memória RAM, utilizados exclusivamente para o "FinalCut Pro 1.0". Muitas histórias. Muitas "cooombis" e muitos "não enche bicicleta!". Muito respeito. Obrigada por tudo. Meu melhor e mais sincero abraço, Lika Nóbrega.)

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